5 de maio de 2008

O equivocado despertar do Inconformismo

Por Fabio Reynol.

Era um país muito estranho. A democracia era tão grande que o povo elegia os seus próprios tiranos. Estes se revezavam no poder enquanto aquele só assistia tudo de longe entre uma eleição e outra. Os de cima fingiam defender o povo. Os da baixada faziam de conta não enxergar. Os do poder só governavam para manter o poder e a água quente de suas hidromassagens. Os do porão punham água suja em latões e na cabeça levavam. O Inconformismo continuava em seu hibernal sono profundo.

Os poderosos roubaram ambulâncias, construíram palácios, criaram impostos, desviaram dinheiro, tiraram vidas, mantiveram privilégios. O povo doente foi a pé aos hospitais falidos, construiu barracos, tapou buracos, juntou as sobras e na cabeça levou. O Inconformismo deu uma roncadinha e virou para o outro lado.

Os poderosos criaram uma guerra dentro do país. O povo ficou na linha de fogo. Chacinas viraram rotina. Granadas e balas cruzaram as cidades. O Inconformismo quase acordou com os tiros, esboçou um bocejo, mas voltou a ressonar.

Quando tudo estava dado por perdido e a Esperança já estava na sala de embarque do aeroporto, algo surpreendente aconteceu. Uma criança branca da classe média foi morta. Não pela guerra das ruas, mas por uma muito particular e mal resolvida. Dessa vez, num só movimento, o Inconformismo saltou da cama e correu para a rua.

Muitos que nunca haviam gritado na frente dos palácios em defesa da própria dignidade, tiraram o pijama, saíram de suas casas e foram à porta da delegacia só para gritar “assassinos” a dois desconhecidos condenados pelo senso comum.

Furibunda, a Sensatez, que nunca havia conseguido acordar o marido, olhou pela janela e berrou:
- Que raio você está fazendo aí fora?
Com a cara mais lavada do mundo, ele respondeu:
- Te troquei por outra!

A Sensatez morreu na hora enquanto o Inconformismo e a Incoerência se enlaçaram num beijo apaixonado.

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