24 de junho de 2008

Espelhos [L.F. Veríssimo]

Chega um dia na vida de todo homem em que ele se olha no espelho de manhã e
tem uma revelação estarrecedora: sua mulher está dormindo com outro! Depois ele olha
melhor e vê que não é outro, é ele mesmo, mas por alguma razão inexplicável ele está
com 40 anos. Acabou de entrar naquela terra mítica chamada meia-idade, outrora
habitada apenas por pessoas estranhas como os pais da gente.

O espelho nos mostra o nosso contrário, nossa esquerda na nossa direita, mas
este é o limite máximo da sua dissimulação. Fora isso, ele é de uma franqueza brutal e irrecorrível. Vivemos na era das relações públicas, é inadmissível que a nossa própria imagem nos trate com tanta crueza. É inadmissível que alguém Ihe diga "Você tem 40 anos!" (ou 50, ou 60, ou até, meu Deus, mais!) assim na cara, mesmo que quem diga seja a sua própria cara. E de manhã, na hora em que, ainda amarrotado pelo sono e antes de botar o rosto que usará durante o dia, você está mais vulnerável. Se a cena pudesse ser confiada a um profissional da comunicação seria diferente.

O mal do mundo é que as piores notícias quase sempre nos são dadas por amadores. Se a sua imagem no espelho fosse confiada a um especialista em marquetchim, em vez da sua cara no espelho revelador você veria a da Isadora Ribeiro. E a Isadora Ribeiro diria "Alo,campeão".Você checaria para ver se sua mulher ainda estava dormindo e voltaria para encarar o espelho.

- Você por aqui, Isadora?
- Vim para dizer que você vai ficar ótimo, grisalho.
- Grisalho, eu?
- Ficará mais maduro. As rugas realçarão o caráter, seja ele qual for. As entradas
no cabelo deixarão você parecido com o Clint Eastwood, pelo menos da testa para cima.
E se um queixo enfatiza a masculinidade, imagine dois.
- Rugas, entradas, queixos... Isadora, você está querendo me dizer alguma coisa?
Ou então: é você mesmo quem aparece, e convida você a mergulhar de pontacabeça
no espelho e descobrir como é a vida no outro lado dos 40. Você mergulha, e se
vê num mundo muito parecido com o que deixou.
- Mas está tudo igual - comenta.
- Exato. Só você mudou um pouco.
Você testa os movimentos de braços e pernas. Tudo funciona normalmente. Mas
não é isto que interessa.
- Como está o... a...
- Impulso sexual integral e constante por tempo indeterminado. Mas comece a
evitar motéis com escada.
- Cuidados com a saúde?
- Diminua o consumo de carne branca, preta, amarela e mulata. Principalmente
depois das refeições.
- Fora isso...
- Sua vida continuará a mesma, até com vantagens. O cabelo grisalho aumentará
sua credibilidade, o que é sempre bom para os negócios. E você terá pretextos para sair
de reuniões muito compridas, pois estará subentendido que precisa ir ao banheiro mais
seguido.
- Então, que venham as rugas!
- Mas há o outro lado da questão...
- Qual?
- Se você não aprendeu a manejar um computador até agora, não aprenderá
nunca mais. Os computadores vêm com um alarme embutido contra pessoas com mais
de 40 anos. Se uma delas os toca, é ridicularizada na hora. Eles apitam, e aparece uma frase desaforada na tela.

- Que mais?
- Aquela menina nova no escritório. - Sei.
- A parecida com a Isabelle Adjani, mas com coxas brasileiras.
- Sei.
- Ela vai sorrir para você...
- Sim?
- Vai se aproximar de você...
- Sim?
- E dizer: "Minha mãe diz que acha que já trabalhou com o senhor, tio."
Não, não procure consolo no espelho tradicional, esse instrumento diabólico que
há séculos destrói todas as nossas fantasias. Nossa esperança é a tecnologia: cedo ou
tarde inventarão o espelho digital. Ele não refletirá a imagem, simplesmente. A captará e a transformará em impulsos eletrônicos, que podem ser manipulados pelo usuário. No painel do espelho digital haverá duas teclas: "A Verdade" e "Escolha Você Mesmo".

Acionando esta última, você terá à sua disposição um menu de Opções reconfortadoras
para o que o espelho Ihe mostrará, desde "20 anos menos" até "Richard Gere com outro
nariz". Você poderá usar um recurso chamado "Retouch" que lhe permitirá...
Mas o que eu estou dizendo? De nada nos adiantará o espelho digital. Na idade
em que precisarmos dele, não saberemos como manejá-lo.

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