26 de outubro de 2007

Questão de escolha

O debate suscitado pelo filme Tropa de Elite ocorre porque ele mostra de forma relativamente realista a vida e as escolhas daqueles que vivem na encruzilhada entre dois sistemas éticos. De um lado, neste ringue de pesos-pesados, está a ética clássica, de origem judaico-cristã, que orienta as ações da imensa maioria da população. Do outro, a ética moderna, que orienta os textos legais.

Pela ética clássica, o dever de auxiliar o próximo é diretamente proporcional à proximidade, ou seja: tem-se mais dever de ajudar o irmão que o primo, e o primo que um ilustre desconhecido. Na ética moderna, vale o princípio da impessoalidade, e seria errado tratar diferentemente o irmão, o primo e o desconhecido. Na ética clássica, o incesto é crime, mas a pirataria de CDs não o é; na moderna, o incesto não é crime, mas quem copia Tropa de Elite é um criminoso.

A Polícia Militar, que prende quem agiu contra a ética clássica e o conduz ao mundo da ética moderna, encarnada no Direito, é quem mais sofre conflitos éticos. O segundo lugar é dos delegados de polícia – para quem a PM leva o criminoso preso – que têm a difícil missão de tipificar o crime, ou seja, verificar qual lei o sujeito teria violado.

O problema maior de ambos é que a população não quer ver o criminoso preso por ele ter violado a lei positiva – o Código Penal ou a Lei das Contravenções –, mas por ter ele violado as regras moldadas pela ética clássica. Assim, quando um ladrão age no bairro, a população quer que a polícia o prenda porque “ele roubou”. A PM o prende e é aplaudida. Ao chegar na delegacia, compete ao delegado tipificar o “roubo”, que passa a ser “furto” (pela lei, se não houve “ameaça ou violência à pessoa” não é roubo) ou “furto qualificado” (se o sujeito quebrou a janela, arrombou a porta ou pulou o muro para entrar). Já virou outra coisa.

A polícia, porém, só é aplaudida por levar à punição quem agiu contra o código ético clássico, não quem violou a ética moderna tal como expressa na lei. A prova disso é a indignação da população diante de prisões de camelôs ou de solturas legais de criminosos. Para piorar a situação das polícias, a lei brasileira tem mais furos que um queijo suíço. Desconfio seriamente de que sejam furos propositais, feitos para que os “bacanas” possam, com o inefável auxílio de um bom advogado, escapar de passar uma noite que seja atrás das grades. O ladrão do nosso exemplo dificilmente passará mais que uma noite na cadeia, por ser o furto um crime de menor potencial ofensivo, por ser ele réu primário, etc.

Quando a lei foi feita, porém, não se a concebeu para que fosse aplicada a este ladrão. Na década de 40 – de quando datam os códigos, em sua maior parte – a pena real aplicada ao ladrão, a pena que iria saciar a sede de Justiça da população orientada pela ética clássica, não era a cadeia, mas a surra que o ladrão levaria da polícia. O coitado seria levado para um canto qualquer e surrado sem dó nem piedade. Isto o faria temer a polícia, e daria à vítima do roubo a satisfação de sabê-lo punido. E daí, pensava a população, se esta punição é paralegal? E daí se esta surra não estava contida nos códigos? “O ladrão mereceu”, “ele estava procurando”.

Hoje, com o avanço da luta pelos Direitos Humanos, diminuiu tremendamente o número de covardias do gênero. Não mudou, contudo, a lei. O mesmo ladrão, hoje, chega à delegacia rindo e ridicularizando os policiais que o prenderam: ele sabe que no dia seguinte estará solto, e sabe que se encostarem um dedo nele os policiais terão problemas sérios. Isto coloca os policiais, especialmente a PM, em uma situação extremamente difícil: forçados a agir de acordo com uma lei que foi feita para que ninguém fique preso, o apoio popular a sua ação depende, contudo, de que seja saciada uma sede de justiça que se orienta por outro código que não o da lei. É daí que vêm os abusos, é daí que vem a atitude de apoio generalizado da população à brutalidade policial escancarada da Tropa de Elite. Se a polícia não bate, o ladrão ri dela e da população. Se ela bate, os movimentos de Direitos Humanos asseguram a punição dos envolvidos.

Surras em delegacias, covardias contra presos e execuções sumárias disfarçadas de “autos de resistência” têm como origem uma legislação de execução penal que não corresponde aos anseios de justiça da população. Enquanto não houver uma reforma nos códigos, adequando-os a esta visão de justiça, a impunidade dos criminosos e o abuso de força da polícia continuarão seu medonho cabo-de-guerra.

Carlos Ramalhete é professor de Filosofia e presidente da ONG HSJ, dedicada à preservação da cultura brasileira.

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