20 de abril de 2007

Crônica da loucura

O melhor da Terapia é ficar observando os meus colegas loucos.
Existem dois tipos de loucos. O louco propriamente dito e o que
cuida do louco:o analista, o terapeuta, o psicólogo e o Psiquiatra.
Sim, somente um louco pode se dispor a ouvir a loucura de seis
ou sete outros loucos todos os dias, meses, anos. Se não era louco, ficou.
Durante quarenta anos, passei longe deles. Pronto, acabei diante
de umlouco, contando as minhas loucuras acumuladas. Confesso, como
louco confesso, que estou adorando estar louco semanal. O melhor
da terapia é chegar antes, alguns minutos e ficar observando os
meus colegas loucos na sala de espera. Onde faço a minha terapia
é uma casa grande com oito loucos analistas. Portanto, a sala de
espera sempre tem três ou quatro ali, ansiosos, pensando na loucura
que vão dizer dali a pouco. Ninguém olha para ninguém. O silencio é
uma loucura. E eu, como escritor, adoro observar pessoas, imaginar
os nomes, a profissão, quantos filhos têm, se são rotarianos ou
leoninos, corintianos ou palmeirenses. Acho que todo escritor
gosta desse brinquedo, no mínimo, criativo. E a sala de espera
de um "consultório médico", como diz a atendente absolutamente
normal (apenas uma pessoa normal lê tanto Paulo Coelho como ela), é um
prato cheio para um louco escritor como eu. Senão, vejamos:
Na última quarta-feira, estávamos: 1. Eu 2. Um crioulinho muito bem vestido,
3. Um senhor de uns cinqüenta anos e 4. Uma velha gorda.
Comecei, é claro, imediatamente a imaginar qual seria o
problema de cada um deles. Não foi difícil, porque eu já partia
do principio que todos eram loucos, como eu. Senão, não estariam
ali, tão cabisbaixos e ensimesmados. O pretinho, por exemplo.
Claro que a cor, num país racista como nosso, deve ter contribuído
muito para levá-lo até aquela poltrona de vime. Deve gostar de
uma branca, e os pais dela não aprovam o namoro e não conseguiu
entrar como sócio do "Harmonia do Samba". Notei que o tênis
estava um pouco velho. Problema de ascensão social, com certeza.
O olhar dele era triste, cansado. Comecei a ficar com pena dele.
Depois notei que ele trazia uma mala. Podia ser o corpo da
namorada esquartejada lá dentro. Talvez apenas a cabeça.
Devia ser um assassino, ou suicida, no mínimo. Podia ter
também uma arma lá dentro. Podia ser perigoso. Afastei-me
um pouco dele no sofá. Ele dava olhadas furtivas para dentro
da mala assassina. E o senhor de terno preto, gravata, meias
e sapatos também pretos? Como ele estava sofrendo, coitado.
Ele disfarçava, mas notei que tinha um pequeno tique no
olho esquerdo. Corno, na certa. E manso. Corno manso
sempre tem tiques. Já notaram? Observo as mãos. Roía as unhas.
Insegurança total, medo de viver. Filho drogado?
Bem provável. Como era infeliz esse meu personagem.
Uma hora tirou o lenço e eu já estava esperando as lágrimas
quando ele assoou o nariz violentamente, interrompendo o
Paulo Coelho da outra. Faltava um botão na camisa.
Claro, abandonado pela esposa. Devia morar num flat,
pagar caro, devia ter dívidas astronômicas. Homossexual?
Acho que não. Ninguém beijaria um homem com um bigode
daqueles. Tingido. Mas a melhor, a mais doida, era a louca
gorda e baixinha. Que bunda imensa. Como sofria, meu Deus.
Bastava olhar no rosto dela. Não devia fazer amor há mais de
trinta anos. Será que se masturbaria? Será que era esse
o problema dela? Uma velha masturbadora? Não! Tirou um
terço da bolsa e começou a rezar. Meu Deus, o caso é mais
grave do que eu pensava. Estava no quinto cigarro em dez
minutos. Tensa. Coitada. O que deve ser dos filhos dela?
Acho que os filhos não comem a macarronada dela há dezenas e
dezenas de domingos. Tinha cara também de quem mentia
para o analista. Minha mãe rezaria uma Salve-Rainha por
ela, se a conhecesse. Acabou o meu tempo. Tenho que ir
conversar com o meu psicanalista. Conto para ele a minha
"viagem" na sala de espera. Ele ri, ...... ri muito, o meu psicanalista, e diz:
- O Ditinho é o nosso office-boy. - O de terno preto é representante
de um laboratório multinacional de remédios lá no Ipiranga e
passa aqui uma vez por mês com as novidades.
- E a gordinha é a Dona Dirce, a minha mãe.
- E você, não vai ter alta tão cedo...

Luiz Fernando Veríssimo

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